Title: As relações civis-militares no Brasil depois dos atentados de 11 de setembro

Date: 27/03/2003
Language: portuguese

AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NO BRASIL DEPOIS DOS ATENTADOS DE 11 DE SETEMBRO
Héctor Luis Saint-Pierre
Os atentados do 11 de setembro nos Estados Unidos mudaram a conceptualização nos âmbitos da Defesa e da Segurança Internacional e derrubaram as teorias das Relações Internacionais que subestimaram a centralidade das Relações de Força. Como "nova ameaça", o terrorismo internacional comoveu o dispositivo de Segurança internacional obrigando à adequação das estruturas defensivas das Nações. Isto significou, em alguns países, a revisão constitucional do seu capítulo de Defesa, a discussão de novas missões para as Forças Armadas e a atribuição de novas prerrogativas, especialmente na inteligência interior. Neste artigo questionamos a pertinência de mudar o papel constitucional das FA para o novo desafio alertando sobre a possibilidade de retrocesso do controle civil sobre estas pela autonomia que adquirirão com o argumento de "combate eficiente" ao terrorismo. Finalmente, focalizando o contexto brasileiro, discutimos as medidas tomadas e os efeitos da estratégia internacional contra o terrorismo nas relações políticas entre civis e militares no Brasil à luz dos debates sobre a política de Defesa e a proposta de militarizar o combate ao crime organizado.
A necessidade de definir "terrorismo"
Os ataques perpetrados em Nova York e Washington o 11 de setembro recolocaram a prioridade da análise do fenômeno das relações de força e as questões de Segurança Internacional numa posição destacada na agenda dos estudos das Relações Internacionais e, mais particularmente, ao fenômeno do terrorismo no centro da mesma, como catalisador dos arranjos de forças na sua função de critério para distinguir amigos de inimigos1 e como orientador principal nas decisões de política de Segurança Internacional. Seja como objeto de analise dos estudos das Relações internacionais ou como justificativa da frente de projeção estratégica global do esforço bélico da Superpotencia, a emergência do fenômeno terrorismo exige uma reflexão urgente no âmbito da Polemología. A partir desse trabalho, talvez possamos nos aproximar de uma definição de "terrorismo" que impeça o emprego extensional, arbitrário e político do mesmo e, internamente, a repressão indiscriminada e o atropelo aos direitos humanos e ao Estado de Direito por uma guerra não definida e mal formulada deflagrada num lugar indeterminado e contra um inimigo desconhecido e invisível. O perigo dos Estados entrarem impulsivamente numa guerra contra o terrorismo é cair no emprego de tácticas terroristas, perdendo a base jurídica e a orientação moral, sem a qual, as relações internacionais poderão ser levadas a um limite além do qual, o retorno é incerto, pois, como diz Michael Walzer, "o terror é a forma totalitária da guerra e da política. Joga pelos ares a convenção bélica e o código político. Traspassa os limites morais e, uma vez cruzado esse umbral, não parece já possível estabelecer limitação alguma"2
Na verdade, o terrorismo é tão velho quanto a guerra. Os Estados, os exércitos, as etnias, os grupos e os homens isoladamente têm empregado o expediente do terrorismo como forma de diminuir a coragem e resistência dos seus inimigos para facilitar a vitória. De assassinatos até etnocídios, passando por genocídios e magnicídios, com o único objetivo de infundir o terror, a humanidade, em todos os rincões do globo, tem conhecido desde sempre esta particular manifestação da violência. A tétrica característica que recobre de novidade este velho flagelo talvez seja sua atual e crescente internacionalização.
A característica internacional do terrorismo pode ser nova, mas não surpreende. Com efeito, num mundo cuja novidade consiste na hegemonia incontestada de uma Superpotência com interesses globais, onde a realização desses interesses dificilmente se completa sem ferir outros, a colheita de ódio torna-se inevitável. Quando nenhuma ação diplomática é eficiente para defender interesses postergados, quando nenhum organismo internacional é suficientemente forte como para distribuir justiça entre interesses afetados, quando nenhuma forma convencional de violência é eficaz para defende-los, fica aberta a porta para que o ódio da impotência se manifeste de maneira incontrolável e algumas vezes irracionalmente com relação aos seus objetivos. Na Guerra do Golfo ficou claro, como observou Eric de La Maisonneuve, que qualquer exercito convencional é impotente ante a manifestação pretoriana da Superpotência. Ante esta constatação, qualquer pretensão estratégica conta com apenas dois caminhos para "igualar" suas possibilidades, o poder igualitário do átomo, demasiado longe para os paises pobres, ou o recurso à guerra assimétrica: a guerrilha e o terrorismo. Especialmente o terrorismo, pela sua simplicidade operativa, o seu baixo custo, seu efeito devastador, a facilidade de trasnacionalização e a facilidade de visibilidade global, torna-se uma alternativa tentadora para manifestar o ódio por parte de grupos fanáticos ou de expressão política para grupos descontentes. Com respeito à internacionalização do terror: ante uma hegemonia planetária com interesses globais o terreno de operações torna-se também global. E assim, "Afastamo-nos das guerras convencionais, limitadas aos especialistas, que podiam constituir uma forma de continuação da política por outros médios; estamos na era da guerra de todos contra todos"3
A novidade foi o ataque com vítimas em território norte-americano, coisa que não acontecia desde a guerra de 18124. Mas provocou uma nova ordem mundial, realinhando alianças e projeções estratégicas com o objetivo de combater um "terrorismo" não definido ou, o que é pior, mal definido. De fato, a frente de projeção estratégica que polariza a atual correlação de forças internacionais é um fenômeno difuso e global que, na sua ambigüidade conceitual, torna-se politicamente versátil para identificar o inimigo em três planos diferentes, superando amplamente a função que desempenhava o conceito do "comunismo" durante a guerra fria. Este conceito, deliberadamente vago e ambíguo, permite:
- por um lado, delimitar a frente internacional, ao definir uma inimizade global com o conseqüente arco de alianças intencionais que divide o mundo em duas esferas eticamente antagônicas e irreconciliáveis, o lado do "bem", representado pelos que concordam com a conceitualização intensional de "terrorismo", isto é, com as listas elaboradas pelo Departamento de Estado, e se comprometem na guerra a morte contra esse inimigo, e o lado do "mal" representada pelos considerados "terroristas", mais todos aqueles paises que os apóiem e todos os que pretendam se manter à margem de guerra que não admite neutrais;
- por outro lado, essa ambigüidade e o caráter difuso do inimigo, somado à imprevisibilidade das suas ações e a localização na que emergirão para despejar sua carga letal, obriga aos governos a permanecerem alertas à manifestação nacional do "terrorismo", delimitando, deste modo, a fronteira interna da guerra. Detrás de cada pacato cidadão pode se esconder um terrorista, detrás de cada homem e mulher se potencializa uma eventual ameaça que obriga à desconfiança de todo patrício, nacionalizando a inimizade internacional do terror. Este frente de combate permite aos governos, no limite e conforme suas necessidades de governabilidade, caracterizar as manifestações de descontentamento social como "atos terroristas" e aos movimentos sociais que os promovem como "grupos terroristas";
- finalmente, embora vago e difuso, este conceito poder se condensar materialmente em algum país representativo do decretado "eixo do mal" ou de seus aliados. Isto cria um excelente cenário bélico convencional sobre o qual, a Superpotência possa exibir sua capacidade imperial despejando material bélico convencional, de maneira a exibir ameaçadoramente a tecnologia do seu requintado arsenal militar para potenciais compradores e dissuadir possíveis inimigos.
O uso extensivo do conceito de "terrorismo internacional" não leva em conta uma distinção iniludível entre os critérios definicionais especificamente acadêmicos e os pragmático-políticos. Por exemplo, houve outros notórios incidentes no Cone Sul, como o atentado contra a Embaixada de Israel na Argentina e, posteriormente, aquele que atingiu ferozmente à Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), que aparentemente tiveram apoio financeiro e organizacional desde o estrangeiro em comunhão com logística e comandos nacionais, mas que ainda assim, não foram considerados como pertencentes ao conceito de "terrorismo internacional" nem que tivessem ameaçado à Segurança Internacional. Não se solicitou nem se ofereceu, como depois do 11 de setembro, um incondicional apoio internacional à luta contra o terrorismo. Tampouco foram investigados depósitos bancários nem rasteados os fluxos financeiros que poderiam ter conexão com os atentados, ninguém propus organizar uma internacional de inteligência para prever e antecipar outros atentados similares. Naquele momento não houve a solidariedade internacional hoje exigida com prepotência: o perigo ainda parecia demasiado austral, demasiado longe para a potencia que ainda se sonhava invulnerável.
Mas desta vez, que o impacto foi deflagrado no simbólico coração do sistema financeiro internacional e no verdadeiro centro do sistema nervoso da pletora que o defende, que ficou claro que não existe escudo nuclear suficiente nem Superpotência absolutamente invulnerável às formas permanentemente mutantes das garras do terror, que qualquer potencia pode ser alvo de um ataque terrorista interno ou externo, realizado não com fantásticos mísseis, mas por um pequeno grupo de fanáticos determinados a colocar sua vida como vetor da morte, apenas armados de aviões comerciais ou pelas infinitas variáveis de ataques imprevisíveis. Como resposta, a comunidade internacional reúne-se num ato condenatório e decide combater solidariamente numa "guerra" que foge de qualquer caracterização clássica, contra toda e qualquer forma de "terrorismo", independentemente do peso semântico que oculte este esquivo conceito.
O terrorismo pode ser combatido. Negar essa possibilidade é decretar de antemão a impotência da estratégia. Mas precisamente por isso e para isso devem ficar perfeitamente claros os critérios para definir o "terrorismo", assim como devem ser explicitados os critérios de aplicação dessa definição e discutidos os meios mais eficazes para levar a cabo esse combate e, particularmente, para poder desenvolver uma teoria sobre o terrorismo. Como diz Grant Wardlaw, "Sem uma definição fundamental, não é possível dizer se o fenômeno ao que chamamos terrorismo é ao menos uma ameaça, se a sua natureza é diferente à das suas manifestações anteriores e se poder-se-ia estabelecer uma teoria do terrorismo"5
Além das taxonômicas, as ciências contam com dois tipos diferentes de definições. Existe a definição que os lógicos chamam de "definição intensional", que define pela caracterização de um atributo específico do definido, como o aristotélico "gênero próximo e diferencia específica", ou aquela conhecida como "definição extensional", que define pela numeração extensiva dos elementos que fazem parte do conjunto definido, e cujo critério é o de inclusão ou exclusão do conjunto. A precaução sobre os critérios empregados para definir "terrorismo" fica dramaticamente justificada quando a Superpotência, através de uma definição puramente extensional de terrorismo, isto é, pela inclusão ou exclusão nominal de grupos de indivíduos ou países, publica, sem discutir com a comunidade internacional nem explicitar os critérios de inclusão, as famosas "listas" dos que ela considera "terroristas", e contra os quais os governos solidários são compelidos a combater.
A importância destas definições reside no fato de que, por um lado, elas delimitam a frente de projeção estratégica do combate internacional ao terrorismo e sua caracterização geopolítica ou cultural e, por outro, essas listas, hoje definidas arbitrariamente, provocam pânico6 nos povos e seus governantes e confusão na hora de deliberar sobre as prioridades estratégicas nacionais e as verdadeiras ameaças para formular as políticas de defesa, especialmente para os países latino-americanos. Nessas listas -que por obedecer a critérios extensionais estão sujeitas a arbitrariedades - aparecem grupos que disputam o monopólio da violência, como por exemplo as FARC, que combatem na fronteira norte do Brasil. Pode se argumentar que as FARC praticam atos terroristas, ainda assim, o que deve ser discutido para determinar seu peso definicional, é se essas ações táticas terroristas são suficientes para incluir ao grupo que as pratica dentro da definição de terroristas. Tácticas terroristas são freqüentemente usadas por grupos de crime organizado, por traficantes, por governos e em muitos casos por exércitos regulares, inclusive o de Colômbia, mas esses atos terroristas por si só não tornam terroristas àqueles que os realizam, assim como não torna terrorista a George Bush apenas sua frase, claramente terrorista, "quem não estiver do lado dos Estados Unidos estará contra e será aniquilado".
As dificuldades para uma definição objetiva de "terrorismo"
Uma das primeiras dificuldades para definir o terrorismo decorre da característica eminentemente subjetiva do terror. Tendo como propósito "destruir a moral de uma nação ou de uma classe, socavar sua solidariedade"7, o terrorismo é uma forma de violência cuja realização se objetiva no âmbito psicológico do indivíduo. Seu efeito é uma disposição psicológica e portanto íntima: o terror, um pavor incontrolável. Esta natureza subjetiva do terror, para Wilkinson, constitui precisamente um dos problemas fundamentais na definição de terrorismo8. O medo é um fenômeno subjetivo e não há como determinar objetivamente um umbral único para o terror, que dependerá de fatores tão variáveis como os pessoais, os funcionais e os culturais. Mas, embora esta indeterminação seja talvez fatal como caminho para uma procurada teoria do terrorismo, a subjetividade é precisamente o alvo estratégico de esta peculiar forma de violência, como adverte Reynares:
"a intenção de suscitar reações emocionais tais como ansiedade, incerteza ou amedrontamento entre os que formam parte de um determinado agregado da população, de maneira que resulte factível condicionar suas atitudes e dirigir os seus comportamentos numa direção determinada, prima nos atos terroristas sobre o desejo de causar danos tangíveis a pessoa ou coisas"9
Outra das dificuldades para definir objetivamente "terrorismo", apontada por vários autores que trabalharam o tema, é o sentido pejorativo com que se empregou esta palavra ao longo da história. A aplicação da palavra "terrorismo" vem sempre acompanhada de um juízo valor e, por tanto, subjetivo: o grupo que para alguns é terrorista para outros poderá estar formado por guerreiros da liberdade, em geral, o terrorista é sempre o "outro". Este fato dificulta a adoção de um conceito objetivo, unívoco, aceito por todos e que possa permitir o desenvolvimento de uma teoria do terrorismo. Freqüentemente se emprega o apelativo "terrorista" para desumanizar ou desacreditar adversários políticos ou qualquer oposição ao regime estabelecido. O apelativo de "terrorista", por um lado, parece justificar o emprego de todos e quaisquer meios na sua contra e, por outro, procura abrir uma brecha entre o grupo assim considerado e a população em geral evitando a simpatia destes com a causa daqueles. Por outro lado, parece haver uma certa dificuldade generalizada para considerar como "terroristas" alguns dos atos de violência e comportamentos regulares, oficiais, aqueles praticados pelos governos e em alguns casos em nome da ultima ratio do Estado. Todavia, aquela dificuldade desaparece quando se trata de caracterizar o comportamento de indivíduos que manifestem sua inconformidade com violência ou de algum grupo que se insurja com métodos terroristas contra o monopólio da violência do Estado, mesmo que se trate daqueles Estados que não duvidam em empregar tácticas terroristas contra a sociedade. Como diz Michael Walzer, "A imposição sistemática do terror sobre populações inteiras é uma estratégia que se utiliza tanto na guerra convencional como na guerra de guerrilhas e é um recurso que empregam tanto os governos estabelecidos quanto os movimentos radicais"10
Esta distinção entre a pretensa racionalidade da violência dos governos, por um lado, e a irracionalidade da violência individual contra aquele por outro, é uma das maiores dificuldades para uma definição clara de terrorismo ou para reconhecer manifestações de terrorismo de Estado. Este fato não passou inadvertido para Wardlaw quem, tentando explicar a tendência generalizada a classificar como força à ação dos governos e de terrorismo à dos indivíduos, aponta que os primeiros servem-se de recursos substanciais e títulos bem reconhecidos pela sua legitimidade, em tanto que os indivíduos não podem reivindicar igual legitimidade e caracterizam-se pelos seus escassos recursos e modos de violência pobres. Mas por outro lado, este autor afirma que um forte motivo para não considerar o acionar dos governos como terrorismo e sim a ação contra estes são as formas como a sociedade percebe esta diferencia:
"A primeira delas é a representação dos atores do estado-nação como seres racionais cujas ações servem a um fim maior. Fomenta-se a impressão de pessoas com autodomínio, idéias lógicas e senso da responsabilidade, impressões que se reforçam com os estilos de vida do conservadorismo e com qualidades atrativas. Pelo contrario, o ator, que é o terrorista individual, mostra-se como irracional, impulsionado por uma mente insana e com propósitos egoístas e de destruição ilógica. A esta diferencia contribuem ainda mais as armas que cada um pode escolher e a forma em que as levam (...) O soldado pode-se se descrever como um individuo controlado que leva legitimamente a sua arma às vistas de todo o mundo. (...) A pessoa que coloca uma bomba carece dessa legitimidade. A bomba coloca-se secretamente, tem efeitos imprevisíveis. (...) Assim, a violência do terrorismo oficial está cosificada e legitimada, mas não a do individuo".11
Ante a divulgação das imagens dos atentados de Nova York, refletindo plasticamente o ponto ao que pode chegar a ira "irracional" dos terroristas, passou quase inadvertida a atitude terrorista do presidente da maior superpotência ameaçando "a todos aqueles países que não estivessem do lado dos Estados unidos". Para o olhar eletrônico do mundo, a redução a escombros do miserável Afeganistão pareceu uma resposta "racional", equilibrada e "justa" pelo que os norte-americanos sofreram. Encontrar-se-á sempre algum jurista que consiga argumentar a favor da "racionalidade" dos tribunais excepcionais e da suspensão dos direitos individuais para preservar a "liberdade individual". Não faltarão sofismas para justificar a "racionalidade" do emprego de quaisquer meios, até os repulsivos para qualquer critério humanitário, para defender a civilização e a democracia, dificultando ainda mais o acesso acadêmico, sem preconceitos nem juízos valorativos, ao fenômeno do Terrorismo. Depois de tudo, como diz Wardlaw, "A cosificação e legitimação do terrorismo oficial permite condenar o terrorismo individual como moralmente repugnante e não reconhecer em absoluto o terrorismo oficial ou aceita-lo como duro, mas necessário".12
Analise do terrorismo
O terrorismo é uma forma de violência cujo efeito realiza-se no âmbito psicológico do individuo13. Seu objetivo é produzir uma reação psicológica no individuo: o terror. O terrorismo é um ato de violência que provoca uma comoção social, uma ação social reativa, isto é, ele é uma violência que procura condicionar comportamentos, uma relação de força. Em quanto relação de força, o ato terrorista pode ser analisado nos três níveis nos que normalmente se manifesta sua violência, tratando de identificar em cada um deles os objetivos aos quais o terrorismo se devota:
- Nível Tático: Este é o aspeto mais visível de toda relação de força, é a sua expressão concreta, a aplicação direta e visível da força, o ataque propriamente dito, o combate, a "gramática da guerra" como diria Clausewitz. Neste nível, o objetivo visado pelo terrorismo é provocar o maior dano possível e com a maior publicidade. Matar, mutilar, com a maior visibilidade e crueldade possíveis, com qualquer meio. Desde facas até bombas passando por todos os tipos de armas, convencionais ou não, são empregadas para mostrar que não há limite para o seu acionar. O emprego epistolar da bactéria Antrax, nos Estados Unidos, nos dias que seguiram aos tentados do 11 de setembro ou o gás zarín, utilizado no metro de Tókio, são exemplos de que armamento químico, biológico e eventualmente nuclear, se caísse nas suas mãos, poderia fazer parte do arsenal do terror.
- Nível Estratégico: O objetivo estratégico de todo exercício da força é outorgar a vitória na guerra, seja pelo uso ou ameaça dessa força. O que se espera neste nível é retirar a capacidade de combate e a vontade de resistir do inimigo para impor a vontade política do vitorioso. No caso do terrorismo, o objetivo estratégico é sempre provocar terror nas pessoas, a sensação irresistível de ser vulnerável e de estar desamparadamente exposto à violência homicida. O terrorismo manifesta no nível estratégico uma especificidade que o torna singular: diferentemente de outras ações política, esta forma de violência não emprega os seus meios táticos para lograr a vitória na guerra nem a tomada do poder para impor a vontade política do vencedor, mas, provocar uma comoção social em toda a população indiscriminadamente ou em uma parte definida desta. Por tanto, o objetivo estratégico do terrorismo, que o distingue de qualquer outra relação de força e o define, é provocar terror.
- Nível Político: Neste nível realizam-se os objetivos pelos quais uma guerra leva-se a cabo. É a política quem escolhe o inimigo; define a lógica da guerra e as formas de retorno à paz; os acordos e os custos que serão impostos ao vencido; a imposição da vontade para a qual os meios diplomáticos resultaram impotentes tornando a guerra viável. No caso do terrorismo não há imposição da vontade, mas apenas procura a fratura da vontade do inimigo. Como não objetiva a tomada do poder (nenhum grupo terrorista deseja o poder político, mas apenas sua destruição) não pode pretender impor a sua vontade, pelo menos não a sua vontade positiva, mas a sua vontade negativa, a desestabilização do inimigo, o desmembramento do tecido social, a falência do Estado. Nem sequer todos os grupos terroristas têm ou perseguem fundamentos políticos. Por tanto, é difícil definir o terrorismo pela sua finalidade política. Raymond Aron dizia que uma guerra se define pela caracterização política dos beligerantes e pelas formas de retorno à paz. No caso do terrorismo esta definição é inaplicável: é difícil caracterizar politicamente aos terroristas (que nem beligerantes são, em sentido estrito) e não existe a possibilidade de retorno à paz. Por outro lado e no limite definicional, toda violência ou emana do monopólio legitimo do Estado ou o contesta, e por tanto, teoricamente, todas suas manifestações seriam políticas.
Não poucas vezes não se percebe uma sutil natureza que distingue os diferentes tipos de vitimas do terrorismo. Há a vítima que morre ou fica ferida no atentado, aquela que é atingida diretamente pelas letais garras do terror; outras, que ficam em pânico e descontroladas; outras ainda, que arcam com o preço político do atentado. Em função daquela tripartição tipológica do fenômeno do terrorismo proposta acima, podemos pensar na diferente natureza que a vítima deste tipo de acionar assume para cada um dos três níveis de análise. Assim, para o nível tático, estratégico e político poderemos encontrar:
- A vitima tática, é a vitima direta, o morto, o esfaqueado, o assassinado, o mutilado, o explodido, o seqüestrado, em fim, aquele que sofre na sua própria pessoa a violência do atentado e deixa sua vida no mesmo ou por ele é diretamente afetado. Ele poder ter sido deliberadamente escolhido por alguma característica ou por pertencer a um grupo definido de pessoas ou, pelo contrario, ser apenas um número estatístico de uma escolha aleatória e indiscriminada.
- A vitima estratégica são os que sobrevivem ao atentado, mas que se encontram de alguma maneira dentro do grupo de risco dos vitimados e ante a possibilidade de ser a próxima vitima. A vitima estratégica, aquela que não é atingida diretamente pelo atentado, mas que, sabendo-se vulnerável, considerando a imprevisibilidade do atentado e ante à possibilidade de ser a próxima vitima tática, é presa do pânico. Esta é a vitima estrategicamente visada pelo terrorista: é aquela que não morre, mas a que permanece viva e aterrada.
- Embora possa não ter objetivos políticos, o terrorismo pode e normalmente tem uma vitima política14: é o Estado, aquela estrutura que deveria garantir a vida dos seus cidadãos, para o qual recolhe pesados tributos com o argumento e a justificativa de montar uma estrutura capaz de assegurar a vida, a propriedade e a tranqüilidade de todos os cidadãos.
Note-se que a vitima preferencial e o objetivo precípuo do terrorismo, a vitima que chamamos "estratégica", não é o morto no atentado, a vítima tática. Inegavelmente o terrorista procurará provocar o maior dano possível e por tanto tentará executar o atentado com a maior visibilidade e a maior quantidade possível de vitimas no nível tático da operação. Porém, se o objetivo estratégico do terrorismo é provocar um pânico incontrolável, obviamente a vitima estratégica não pode ser nunca a vitima tática, aquela que perde a sua vida no atentado, por uma questão eminentemente ontológica: os mortos não temem. Com efeito, a vitima objetivada estrategicamente pelo terrorismo não é o morto que tomba no atentado, mas todos aqueles que ficam vivos e se sentem indefensos ante a vontade do terrorista, conscientes de sua vulnerabilidade. O fundamento do terror não é a morte, mas a insegurança que provoca a certeza da sua vulnerabilidade ante o acionar do terrorista. O fundamento do terror é o sentimento inequívoco de desamparo ante a vontade do terrorista.
Classificação tipológica do Terrorismo
Vários autores propõem classificações tipológicas de terrorismo obedecendo a diferentes critérios classificatórios. Em função do sujeito do terrorismo, por exemplo, poderíamos tipificá-lo a partir da pergunta "quem é o terrorista?" Nesse caso poderíamos agrupar as ações como individuais, quando o atentado é realizado por um indivíduo isolado e sem ligação com nenhuma organização; grupais, quando a autoria do atentado é atribuído a organizações que podem ser políticas, religiosas, étnicas, etc.; finalmente estatais, quando na origem do terrorismo e como seu autor material se encontra o próprio Estado. Conforme o âmbito no qual o terrorismo espalhe o terror, pode se falar de terrorismo Nacional (seja este terrorismo de Estado ou "contra-Estado", este último também chamado de "terrorismo revolucionário"), quando realizado no âmbito do próprio Estado. Será considerado terrorismo Internacional, quando atua num contexto político internacional, como no caso das guerras de libertação contra as formas de ocupação do inimigo15. Finalmente, pode-se falar de terrorismo Transnacional, quando pela possibilidade de mobilizar recursos humanos e materiais, os grupos terroristas atuam em países alheios ao de sua população de origem16.
Tendo em conta a modalidade do atentado, pode se distinguir o terrorismo sexual, psicológico, econômico, militar, etc. Pela consideração dos meios, o terrorismo pode ser perpetrado com qualquer tipo de armas, desde as brancas como nos simbólicos degolamentos na Argélia, até bombas de diferente poder de explosão. Além disso, com o atentado no metrô de Tóquio, ficou claro que as armas químicas não estão excluídas nas ações do terrorismo, e, seguindo esta lógica, podemos concluir que armas biológicas e também atômicas possam fazer parte do arsenal do terror17, isto é, armas de destruição em massa (ADM) em mãos do terrorismo, inclusive na sua forma transnacional.18
Em função dos objetivos procurados, ordenados pela pergunta "para quê?", poderíamos falar de terrorismo patológico, quando não há um objetivo claro, mas o motivo da ação é de ordem psico-patológica, como na maioria dos atentados individuais; religioso, quando o objetivo é aniquilar um grupo religioso ou provocar a adesão religiosa através do medo; econômico, quando o efeito procurado é nessa área, como no caso do terrorismo contra os turistas, em países onde o turismo é a principal fonte de rendas, ou contra fontes de energia, etc.; e político, quando o objetivo são as relações de força, como quando se mata uma personagem política importante, como no assassinato de J. F. Kennedy em 1963.
Neste trabalho propomos um critério classificatório, acorde com a definição de terrorismo que propusemos arriba, baseado na peculiar seleção da vítima, conforme o terrorista procure intencionalmente precisão identificatória (seja pela profissão, a raça, a cor, a religião, a cultura, a classe social, o estamento, o sexo, etc.) ou procure intencionalmente que essa identificação não apareça atingindo como vitima tática a maior variedade e quantidade de pessoas. Em função deste critério, distinguimos dois tipos de terrorismo: o discriminado ou sistemático e o indiscriminado ou aleatório.
a.- Terrorismo sistemático ou discriminatório
O terrorismo sistemático ou discriminatório é aquele que escolhe suas vítimas por alguma característica identificatória, seja esta a religião, a profissão, a cor, a etnia, a classe social, etc. Atentados terroristas com esta característica são, por exemplo, os cometidos pelo movimento separatista basco (ETA)19; pelo Exército Republicano Irlandês (IRA); pelos argelinos pertencentes ao braço armado da Frente Islâmica de Salvação (FIS); pelos comandos palestinos da Hammad, contra postos militares israelitas20; pelos ataques da aviação israelita sobre acampamentos palestinos. Este tipo de ação terrorista baseia sua eficácia na correta precisão da identificação da vítima, pois é a partir dessa identificação que os campos da amizade e da inimizade assumem seus contornos políticos com maior nitidez, obrigando à sociedade a tomar partido por um ou outro dos campos.
O que estas ações têm em comum é que, ainda que esses grupos procurem a tomada do poder, em nenhum caso essas operações terroristas são decisivas. Porém, todas elas se revestem de uma significação muito clara: identificar o inimigo; tornar nítida à frente de combate; manifestar abertamente a opção desse grupo pela luta armada; levar seu inimigo a tomar consciência de que sua posição não é invulnerável; disseminar a intranqüilidade e o terror entre seus membros para forçar a deserção pelo medo e a perda de prestígio da instituição.
b.- Terrorismo indiscriminado ou aleatório
O terrorismo é aleatório ou indiscriminado quando sua vítima não é claramente definida nem obedece a uma seleção sistemática. Este tipo de terrorismo procura deliberadamente vitimar inocentes, em grande número e com a maior diferenciação social possível. O atentado terrorista ideal deste grupo é conseguir matar, num único ato, homens e mulheres, velhos, jovens e crianças, brancos e negros, militares, sacerdotes, pessoas comuns: não há "grupo de risco" delimitado, qualquer um pode ser a próxima vítima. Não há atividade, idade, profissão, credo, cor, ideologia, posição política que esteja isento da possibilidade de ser o alvo do atentado.
A universalidade da vítima é a característica principal do terrorismo aleatório, outra é a espetacularidade e a visibilidade do atentado21. O momento escolhido é normalmente a plena luz do dia e quando o movimento de pessoas é maior. O lugar às vezes é representativo da ordem social imperante, como tribunais, supermercados, lojas, prédios onde funcionam repartições públicas (as Torres Gêmeas e o Pentágono), meios de transporte coletivos (como o metrô de Tóquio), enfim, lugares de grande concentração ou circulação de pessoas. A morte de crianças inequivocamente inocentes, como no atentado perpetrado no edifício de Ocklahoma onde funcionava uma creche, permite mostrar que não há lugar para a piedade, que o terrorista é inclemente e precisa manifestá-lo. Seu objetivo é criar um terror incontrolável e generalizado. O cidadão vê em qualquer outro o possível terrorista inimigo. Quando o terrorismo aleatório é eficaz, todo mundo é suspeito, e, como não há identificação política nem ideológica, sua repressão é muito difícil sem cair num também indiscriminado terrorismo de Estado.
O efeito principal deste tipo de terrorismo é fazer sentir no cidadão a sensação de estar abandono por parte do Estado: é o que chamamos de desamparo aprendido22. O cidadão sente-se desprotegido e vulnerável ao ataque imprevisível e indiscriminado do terrorismo. Ele sente que o Estado, com suas estruturas repressivas e preventivas, é impotente para protegê-lo. Se o soberano, depositário de todas as vontades e forças, não pode cumprir a única contrapartida que o contrato social dele exige, a saber, a proteção da vida do cidadão, então perde a legitimidade, o elemento de coesão afrouxa-se e o tecido social se abre até deixar o cidadão sozinho e aterrorizado.
Embora não tenha como objetivo direto a tomada do poder, este tipo de terrorismo procura a desestabilização política através do terror induzido na população. Quanto mais irracional e aleatório seja o seu acionar, mais eficiente será. Este tipo de terrorismo não identifica um inimigo, não define âmbitos de inimizade, não projeta frentes de combate, apenas provoca uma comoção social desintegradora: o espanto.
Os atentados do 11 de setembro
Os acontecimentos do 11 de setembro acertaram um golpe espetacular e prenhe de simbolismo: um avião de passageiros de simbólica línea aérea norte-americana, cheio de passageiros dessa nacionalidade, carregado de combustível norte-americano, investindo com inapelável precisão e eficácia alvos claramente simbólicos. O ataque inscreve-se no tipo que chamamos "terrorismo aleatório". Procurou-se deliberadamente a maior quantidade possível de vitimas táticas para que nenhum cidadão norte-americano possa se sentir seguro. Todo norte-americano sentiu-se incluído no "grupo de risco". A vitima tática, o morto, o mutilado, não teve qualquer sentido estratégico. A vitima estratégica desse atentado não foram os quatro ou cinco mil mortos caídos entre os escombros, mas os restantes milhões de norte-americanos que ficaram vivos e sujeitos do terror. Com esses atentados, os terroristas colocaram aos cidadãos norte-americanos no que descrevemos acima como "situação de desamparo", isto é, eles ficaram surpresos, atônitos, perplexos e apavorados, sentindo pela primeira vez na própria pele e no próprio território a vertiginosa sensação da vulnerabilidade. No seu próprio país perceberam que o seu Estado, o mais poderoso do mundo e de toda a historia da humanidade, mostrava-se impotente para protege-los. No primeiro momento o ataque alcançou seu objetivo: subsumiu os Estados Unidos na mais profunda soçobra e assombro e aos seus cidadãos no desamparo.
Tal como descrito no modelo, o golpe sofrido pelo cidadão norte-americano levou-o ao sentimento de desamparo afrouxando a urdume do tecido social. Ele percebeu que o seu Estado, com o exército mais poderoso do mundo, com seu fantástico escudo nuclear, quebra-se ante um golpe perpetrado com um simples avião comercial nacional por um pequeno grupo de fanáticos. O cidadão sente que aquele Estado já não pode garantir sua vida na sua própria casa, sente-se desamparado e o tecido social desintegra-se corroendo a legitimidade do poder. Assim é como o terrorismo atinge o seu objetivo político que, insisto, não é a tomada do poder, mas simplesmente desestabiliza-lo. A vítima política do atentado é o Estado norte-americano. Daí o grito marcial do presidente norte-americano George Bush convocando à "guerra contra o terrorismo". Esse grito de guerra tinha naquele momento um duplo objetivo: por um lado, convencer de que ainda havia um Estado que chegaria até as últimas conseqüências, a guerra, para proteger ao cidadão de qualquer ameaça; por outro lado, insuflar a confiança no cidadão de que sua única proteção está ao amparo desse Estado. Com esta dupla mensagem, o presidente conseguiu fechar novamente o tecido social fortalecendo a legitimidade e elevou o espírito do povo norte-americano devolvendo-lhe a confiança na luta.
Os efeitos do 11 de setembro em América Latina e o Brasil
A ambigüidade conceitual do conceito de "terrorismo" o predispõe ao uso político e econômico propicio para a situação de crise latino-americana. A política externa monotemática centrada na "guerra ao terrorismo" dos Estados Unidos desde o começo do período Bush, mais especialmente depois dos atentados, orienta a muitos governos latino-americanos que, impotentes para resolver os problemas que se avolumam nas suas agendas domesticas, procuram seu "terrorista" interno que lhes permita esgrimir as prerrogativas próprias daquela guerra. Embora ninguém acredite seriamente que o terrorismo possa ser combatido mediante uma guerra, a promulgação da mesma tem importantes conseqüências, sociológicas, política, econômicas e jurídicas. A declaração de guerra subordina as prioridades do Estado à Segurança, favorecendo à interessada elite da industria bélica em conluio com as Forças Armadas e com uma elite política impotente e corrupta. A situação de guerra favorece a preeminência do setor militar nas decisões de Estado o que, em América Latina, significa a recuperação de prerrogativas por parte dos militares e o aumento da autonomia das Forças Armadas no Estado. Por ser uma guerra "diferente" pela qualidade estratégica do inimigo, ela é resolvida fora do arcabouço jurídico que regula as guerras: prisões extrajudiciais, torturas, tribunais excepcionais, violações da privacidade, etc, são arbitrariedades toleradas ante o argumento da guerra. Esta associação elite militar, elite industrial e elite política, matizada pela autonomia da ordem jurídica, gera uma lógica de retro-alimentação baseada na "guerra permanente"23.
Pouco fez América latina nessa guerra fora de declarações retoricas. Brasil chegou a propor a aplicação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR). O Ministro da Argentina Jaunarena declarou à imprensa24 que ordenaria "blindar" a fronteira, do que aos poucos dias se desdiz. Como forma de mostrar empenho na causa, foram reforçados os contingentes já numerosos de pessoal de inteligência na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil, Paraguai) congestionando ainda mais o inútil aparato que não foi além de algumas detenções.
Porém, esta nova concepção de "inimigo", que oferece tanto uma frente política internacional, quanto a configuração política do "inimigo interno" na figura do terrorista, foi e poderá ser amplamente empregada com outros fins. Três exemplos bastarão para mostrar como conflitos de diferente natureza transmutam-se em "guerra contra o terrorismo" para atingir seus objetivos não necessariamente antiterroristas: 1) O conflito interno colombiano, que inicialmente era considerado "guerra subversiva", posteriormente, quando as líneas de créditos atrelaram-se à luta contra o narcotráfico, passou a ser considerada pelo governo colombiano como "guerra contra o narcotráfico" tentando aproveitar os fundos do "Plano Colômbia". Quando este plano fracassou pelos gastos sem retorno na luta contra o narcotráfico, e já depois da emblemática data do 11 de setembro, o Presidente Pastraña rompeu o dialogo com as FARC e as declarou "terrorista", facilitando a aprovação de apoio financeiro do congresso norte-americano para essa guerra. 2) O presidente do Peru, Toledo, não admite o fracasso do seu projeto econômico e pede líneas de crédito aos organismos internacionais com o argumento de "enfrentar ao terrorismo", se referindo a uma centena de guerrilheiros inoperantes na fronteira da selva. 3) O Ministro da Reforma Agrária brasileiro, Raul Jugelman, chamou aos integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) de "terroristas", criando as bases para uma repressão a um movimento social legalmente reconhecido fora dos limites juridicamente admitidos (infiltração, inteligência interior, tortura, detenções extrajudiciais) e amparado na lógica da "guerra ao terrorismo". Estes três casos são apenas exemplos que devem chamar à reflexão na definição e aplicação deste conceito que orienta as Relações Internacionais na atualidade. Amanhã o terrorista poderá ser um "piquetero" argentino ou os "coqueros" bolivianos, os movimentos étnicos equatorianos, os golpistas venezolanos ou os sindicalistas mineiros de Chile. Assim, este conceito substitui com vantagens ao de "comunista" nesta nova guerra não tão fria, com uma versatilidade que permite tanto definir a frente estratégica internacional quanto ao "inimigo interno".
Considerações finais
Condenados os atentados e lamentados os mortos, pode-se aproveitar a oportunidade para refletir sobre o fenômeno do terrorismo, sua natureza, suas causas e as formas mais eficientes para combati-lo e reprimi-lo como forma perversa e inaceitável de atividade política. Esta poderia ser uma tarefa permanente da comunidade internacional, pois a natureza internacional do terrorismo exige uma prevenção e repressão também internacional. Mas, por outra parte, é urgente a adoção de uma definição estritamente intensional, clara e internacionalmente unívoca do fenômeno que impeça a aplicação caprichosa e arbitrariamente política de definições extensionais, formalizadas em "listas" que, como um "ranking" do terrorismo, imponha-se ao mundo exigindo, contra os que nela constem, uma atitude bélica. Embora se deva enfrentar ao terrorismo, esse combate não pode admitir todos e quaisquer meios bestializando, desse modo, a guerra e a nobreza dos seus objetivos. É possível combater o terrorismo, mas justamente por isso, não se deve perder de vista os contornos morais e jurídicos desse combate para no cair no paradoxo de, para combater aqueles que se opõem à democracia e as liberdades individuais, se anule a democracia e se atropelem os direitos inalienáveis dos indivíduos a pretexto da eficiência.
Muitos dos grupos incluídos naquelas caprichosas listas talvez sejam terroristas, mas não o saberemos nem teremos condições de discuti-lo seriamente sem uma ferramenta conceitual adequada, isto é, uma definição intensional baseada nas características específicas do fenômeno. Acredito ter apontado neste trabalho algumas notas que podem iluminar a procura de uma definição consistente. Mais que se tornar uma definição universalmente aceita, com ela proponho uma discussão do terrorismo sobre bases objetivas. Pode ser entendido como um chamado ao debate, a uma discussão impostergável sobre a sua pertinência e utilidade para definir quem está por detrás das "novas ameaças", se um inimigo ou um criminal e qual é a melhor maneira de combati-lo.
Numa conjuntura de crise que abala as economias nacionais sem dar respiro aos impotentes e, em muitos casos corruptos governos, em que as desigualdades sociais crescem aceleradamente e as iniqüidades dominam o panorama continental, a estabilidade regional pende do delgado fio da manobra. Nessa situação, assumir guerras de terceiros países pode provocar uma desestabilização generalizada com conseqüências imprevisíveis para a região. Definir politicamente o inimigo é prerrogativa específica e definidora da soberania. Sem definições claras sobre "terrorismo", "terrorismo internacional", "narco-terrorismo", "narco-guerrilha", "crime organizado", etc., correremos o risco de perder aquela prerrogativa e, entrando numa guerra que não nos pertence e por questões que nossa legislação talvez considere meras transgressões ou crimes, transformar a América Latina num horrendo campo de batalha onde a vitória é incerta e no qual apenas ganham os que sempre lucraram com as guerras e que por isso as promovem. Discutamos agora, enquanto a tênue e frágil paz o permita, sobriamente, com a seriedade e o rigor que o tema nos impõe -"sine ira et studio" como exigia Max Weber das reflexões científicas-, as definições sobre as quais posteriormente os governantes terão que se posicionar, inclusive até para declarar a guerra chegado o caso, mas com a certeza da univocidade dos conceitos que estão em pauta. Discutamos agora, na serenidade da ciência, sobre o que não pode se duvidar no campo de batalha.
1. Distinção essa colocada com a veemência schmittiana que cristaliza e define o âmbito do político. A frase do presidente norte-americano "quem não estiver conosco está contra e será combatido" expressa de maneira descarnada e empírica a formulação que teoricamente analisa Carl Schmitt em El concepto de lo político, Buenos Aires, Folio, 1984. Discutimos detidamente esta concepção schmittiana em "La centralidad del concepto de "enemigo"en la teoria de la soberania de Carl Schmitt" in Dotti, J. e Pinto J. (compiladores) Carl Schmitt: su época y su pensamiento, Buenos Aires, Ed. EUDEBA, 2002.
2. Walzer, M.: Guerras justas e injustas. Barcelona, Paidos, 2001, p. 277
3. Eric de La Maisonneuve, La metamorfosis de la violencia. Ensayo sobre la guerra moderna. Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 1998, pp 175-222. A cita é da pag. 184.
4. Ver de Noam Chomsky, 11 de setembro. RJ, Bertram Brasil, 2002.
5. Wardlaw Grant, Terrorismo Político. Teoría, Táctica y contramedidas, Madrid, Ediciones Ejercito, 1986, pg. 38.
6. Destaquei a face terrorista desta guerra contra o terrorismo em "Até tu Arafat?", Jornal do Brasil, RJ, 14-09-01.
7. Walzer, M.: Op. cit., p. 269.
8. Wilkinson, P.: Terrorism and the Liberal State, Londres, Macmillan, 1977, p. 43.
9. Reynares, F.: Terrorismo y Antiterrorismo, Barcelona, Ediciones Paidos Ibérica, 1998, p. 16.
10. Walzer, M, Op. Cit., p. 269.
11. Wardlaw, op. Cit., pp. 42-3
12. Idem, ibidem, p 44
13. Ver de Reinares, Fernando: Terrorismo y Antiterrorismo, Buenos Aires, Paidos, 1998 e deWardlaw, Grant: Political Terrorism, Cambridge, cambridge university Press, 1984, especialmente o Cap. IV.
14. Conforme Max Weber, o Estado pode ser definido pelo exercício legítimo e monopólico da força dentro de um determinado território, pelo qual, toda manifestação da violência seja emanada desse monopólio ou o que o confronte, será política. Note-se que a violência criminal, até a das organizações de crime organizado, nacional ou internacional, embora possa provocar medo na população não discute o monopólio da violência e pof tanto não é uma violência política. Tampouco é terrorismo, porque seu objetivo não é provocar o pânico na população, ainda que o provoque, senão o lucro fácil e delitivo.
15. Para uma visão mais pormenorizada desta classificação ver de Luigi Bonanate o verbete "Terrorismo Político" in Bobbio N. et alli: Dicionário de Política. Brasilia, ed. UnB, 1986.
16. Ver de REINARES, Fernando: Terrorismo y Antiterrorismo, Ed. Paidós, Barcelona, 1998, especialmente o capítulo 5 "Terrorismo en la sociedad internacional".
17. Já foram desmantelados vários intentos de contrabandear material nuclear, em pequenas doses, para a Europa aparentemente vindos da ex-URSS. Em maio de 1992 já advertíamos para esta possibilidade: "O gelo da guerra fria derreteu e sua água radioativa penetrou a porosidade ideológica do mundo (...) O controle nuclear do Leste, caraterizado pela "racionalidade" burocrática, hoje se dilui em vários gatilhos nas mão de líderes tão populistas quanto imprevisíveis" in "A nova (des)ordem mundial", O Estado de S. Paulo, 19-05-92, p. 2. As armas nucleares e biológicas já estão ao alcance dos grupos terroristas, nada impedirá, chegado o caso, que estes grupos as usem. O exemplo do metrô de Tóquio e também o do prédio de Ocklahoma são a constatação de que o terrorismo não tem limites éticos para atingir seus objetivos.
18. Ver sobre este aspecto de HOFFMAN, Bruce: A mano amada. História del terrorismo, Madrid, Ed. Espasa Calpe, 1999, especialmente o capítulo 7: "El terrorismo hoy y mañana".
19. Sobre o terrorismo da ETA, pode-se consultar, de Goldie Shabad and Francisco José Llera Ramo, "Political Violence in a Democratic State: Basque Terrorism in Spain" , in Crenshaw, M: Terrorism in Context. Pennsylvania, Pennsylvania State University Press, 1995.
21. Sobre o terrorismo da OLP assim como sobre o terrorismo judio, consultar, de Hoffman Bruce, A mano armada. Historia del Terrorismo. Madrid, Espasa Calpe, 1999, especialmente o Cap. 3 para o caso da OLP e o Cap. 4 para o caso judio.
21. A natureza espetacular do atentado terrorista, sua repercussão nos meios de comunicação de massa e a necessidade dessa divulgação para a efetividade do ato terrorista são muito bem trabalhados Hoffman no Cap. 5, "Terrorismo, Médios de Comunicación y Opinión Pública", in Hoffaman, Op. Cit., pp194-235. Ver também de Wardlaw, Op. Cit., o Cap. 9: "¿Hay alguna relación simbiótica entre el terrorismo y los medios de comunicación?", pp 144-164.
22. Tomamos esta expressão de um modelo animal usado para estudar doenças mentais, especialmente a depressão. O modelo é construído a partir da sujeição do animal à técnica do choque incontrolável, isto é, à aplicação de choques elétricos de intensidade e freqüência variáveis, mas inescapáveis. Depois de se debater por algum tempo e procurar a fuga por todos os meios, o animal desiste da fuga, aprendendo que qualquer intento é inútil. Esse é o momento em que o animal aprende que está desamparado, constituindo-se no modelo de depressão. O notável é que, a partir desse momento, o animal não procurará a fuga inclusive em situações em que esta seja possível. Veja-se entre outros de M.S. Faria and N.A. Teixeira, "Reversal of learned helplessness by chronic lithium treatment at a prophylactic level" in Brasilian Journal, 26: 1201-1212 (1993). No caso que estamos analisando, o terrorismo funcionaria como os choques elétricos, seus atentados são aleatórios, de intensidade variável e de freqüência incerta; como o Estado não tem condições de garantir a segurança do cidadão, para este a situação apresenta-se como "inescapável". Como o cidadão não pode fazer nada para se salvar do atentado, para garantir sua exclusão da possibilidade de ser a próxima vítima, ele cai em desamparo.
23. Esta lógica e essa configuração sociológica cuja máxima expressão é a "guerra permanente" foi magistralmente denunciada pelo mais destacado sociólogo norte-americano por ocasião da Guerra Fria, refiro-me a Wright Mills. Com relação à aliança das elites militar, empresarial e política, colocada no texto mais acima, permanecem perfeitamente atuais as profundas reflexões e considerações de Wright Mills, ativo intelectual que denunciou essa aliança de interesses como a causa eficiente da tendência à Terceira Guerra Mundial, na metade do século passado, sem medo ao terrorismo de Estado que naquele momento conhecia-se como "macartismo" e que afundo aos Estados Unidos numa época de obscuro terror anticomunista. Para compreender a natureza sociológica das guerras atuais é imprescindível ler deste autor The Cause of World War Three, New York, Ballantine Books, 1960.
24. Diário Clarín, Buenos Aires, 17/09/01.
Source:
Prepared for delivery at the XXIV International Congress of the Latin American Studies Association, March 27-29, Dallas, Texas