A DEFESA NACIONAL NO GOVERNO LULA
Eliézer Rizzo de Oliveira
Agosto 2005
O presidente Fernando Henrique Cardoso, que governou durante dois mandatos (1995-2002), legou ao Brasil uma estrutura de direção do poder civil sobre as Forças Armadas, que é o Ministério da Defesa, criado em 1999, o qual substituiu os anteriores ministérios da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e Estado-Maior das Forças Armadas, que foram extintos.
O Conselho de Segurança Nacional – onde pontificava o poder das Forças Armadas - deixou de existir com a Constituição de 1988. Ora, a existência do Ministério da Defesa aprofundou a diminuição do peso político das Forças Armadas nas decisões de governo. Hoje, a influência militar restringe-se à sua área de atuação, mesmo quando o país poderia beneficiar-se da manifestação democrática de militares sobre temas nacionais. Mas a democracia brasileira impôs o silêncio às Forças Armadas, negando-lhe o direito à manifestação. Por exemplo, não se conheceu o pensamento de militares e das Forças Armadas sobre a polêmica cessão da Base de Lançamento de Alcântara para uso dos Estados Unidos, que acabou não se concretizando. Também não se manifestaram sobre a privatização de empresas públicas que acabou por retirar do governo federal o controle direto de setores estratégicos.
O artigo “Haiti: um grande desafio” do general de Divisão Heleno Pereira, ex-comandante das forças da ONU no Haiti, constitui uma novidade que merece ser saudada e reconhecida. (1)
Diante do silêncio imposto às Forças Armadas, o corpo social militar tende a pressionar o governo por intermédio dos clubes militares no tocante às condições materiais de existência, além de temas propriamente políticos.
Na condição de candidato à Presidência da República, Lula prometeu aos militares a recuperação do prestígio, da consideração política e dos recursos governamentais. Seu discurso foi modulado, de modo claramente populista, para ser acolhido por um público militar insatisfeito com a criação do Ministério da Defesa, a limitação dos recursos financeiros, a perda de poder político e o cerceamento à pesquisa nuclear para fins bélicos, porém entusiasmado com a perspectiva estatizante de um governo de esquerda.
Depois de 32 meses de governo, o presidente não cumpriu tais promessas: postergou a aquisição de aviões militares (mas adquiriu novo avião para a Presidência que consumiu boa parte do orçamento da Aeronáutica) e adiou ao máximo a recomposição dos salários. Quando o fez, deixou no ar a sensação de procurar apoio militar numa grave crise política.
Os recursos apenas mantêm o dia-a-dia dos quartéis, não sendo exagero afirmar que aviões não voam, navios estão parados nos cais e o Exército vive grande penúria. Encontrando-se as verbas militares - aprovadas pelo Congresso Nacional - retidas nos ministérios econômicos as Forças Armadas, com argúcia, preservam a qualidade das escolas e academias. Ou seja, investem com prioridade no sistema educacional e na formação de recursos humanos, preparando-se para dias melhores cada vez mais distantes e menos prováveis.
A contragosto das Forças Armadas, o presidente Lula está aprofundando o emprego militar na Segurança Pública. Chefes militares têm razão quando dizem que as Forças Armadas são preparadas para destruir, não para deter criminosos e conduzi-los à Justiça. No entanto, funcionários de alto nível da área econômica do governo, sem o investimento da delegação política, afirmaram em Grupo de Trabalho do Ministério da Defesa de que participei em 2003-2004 que somente haveria recursos para as Forças Armadas se elas concordassem em ampliar sua atuação na Segurança Pública, ao lado das forças policiais, em reforço a elas ou mesmo substituindo-as. Uma reforma constitucional proposta pelo presidente da República estabeleceu que os militares federais gozam de integral poder de polícia em determinadas circunstâncias, o que caracteriza uma tendência à militarização da Segurança Pública. Ainda, o governo central criou a Força Federal de Segurança, constituída por componentes de Polícias Militares estaduais, que tem a função de intervir em situações de crises graves nos Estados. É certo que esta situação diz respeito mais diretamente ao Exército, mas atinge também a Marinha e a Força Aérea.
No plano do pensamento estratégico e das orientações gerais da Defesa Nacional, o governo Lula publicou a segunda versão da Política de Defesa Nacional (PDN). Esta fora inicialmente adotada pelo presidente Cardoso em 1996, antecedida pela Lei dos Desaparecidos que promoveu o reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de pessoas sob a guarda de autoridades policiais e militares, durante a ditadura militar.
O segundo ministro da Defesa, Geraldo Quintão, ainda com o presidente Cardoso, não conseguiu concluir a renovação da PDN em decorrência das conseqüências conceituais e práticas do 11 de setembro de 2001. O embaixador José Viegas Filho, ministro da Defesa do governo Lula em 2003 e 2004, dedicou-se a este tema com afinco. De fato, criou um Grupo de Trabalho que se reuniu em sessões mensais no “Ciclo de Debates sobre atualização do pensamento brasileiro em matéria de Defesa e Segurança”.1 Quando estava para concluir a revisão da PDN, o ministro Viegas foi ultrapassado numa crise que envolveu o Exército e a questão da tortura, da repressão e dos desaparecidos. Tendo confrontado o comando do Exército, não obteve o suporte do presidente Lula e demitiu-se. No entanto, sua contribuição foi expressiva ao processo de consolidação do Ministério da Defesa. Em 23 meses, fez cerca de 70 discursos para públicos civis e militares (seu substituto tem apenas três discursos no site do Ministério da Defesa em 11 meses de função) num processo pedagógico (educação, convencimento e diálogo) sobre a Defesa Nacional. Visitou universidades, publicou artigos na grande imprensa, tomou iniciativas internacionais (como a reunião de Ministros da Defesa da América do Sul), colocou em debate a complementaridade das indústrias bélicas da região, vinculou a Defesa Nacional aos direitos humanos e não acolheu a tese da criação de uma estrutura militar de Defesa no Cone Sul. Em outras palavras, foi um dirigente pleno da Defesa Nacional e das Forças Armadas.
A Política de Defesa Nacional versão 2005 corresponde a uma atualização conceitual, não se distanciando significativamente do documento precedente, sendo significativa a incorporação do conceito amplo de segurança proveniente da OEA e ONU. Do ponto de vista metodológico, não contou com participação da sociedade civil. É certo que acadêmicos, militares, diplomatas, administradores públicos e parlamentares foram convidados a oferecer contribuição. Mas este processo manteve-se muito distante do caráter participativo – mais difícil e conflitivo – que vigorou em alguns países da região na elaboração e revisão de Livros de Defesa.
A propósito, o Brasil encontra-se na contra-mão da tendência regional à adoção de Livros de Defesa Nacional, documentos mais complexos e completos, aptos a funcionarem como “medida de confiança” no plano internacional e como estimuladores da legitimidade democrática da Defesa Nacional no plano interno. No referido Grupo de Trabalho do Ministério da Defesa, defendi sem sucesso a elaboração do Livro Branco de Defesa.
O ministro Viegas Filho empenhou-se no preparo inter-forças no terreno amazônico, processo francamente diminuído desde sua demissão. A Marinha aplica o conceito estratégico “Amazônia Azul” à Zona Econômica Exclusiva (200 milhas das costas) e à Plataforma Continental. A Aeronáutica acha-se plenamente identificada com o Sivam – Sistema de Vigilância da Amazônia – e com o Programa Aeroespacial (em que pese o desastre ocorrido na Base de Alcântara em 2003). Uma novidade de realce é a abertura plena da Academia da Força Aérea às mulheres, onde passam a formar-se para pilotar aviões de combate, além de outras carreiras de apoio.
O Exército encontra-se implantado na região prioritária da Amazônia, onde desenvolve o conceito e o condicionamento estratégico-militar da Guerra de Selva (doutrina ou “estratégia das operações de resistência”). Aliás, o Exército é a Força que mais desenvolveu o conceito estratégico – “Diretrizes” – no curto, médio e largo prazo, por vezes além do que se encontra definido na Política de Defesa Nacional.
As relações das Forças Armadas com a sociedade civil têm a marca da pluralidade política e ideológica. As academias e escolas de estado-maior abrem-se aos pesquisadores e conferencistas civis, mais do que o fazem as universidades com relação aos militares. O labor militar configura uma reconhecida opção profissional, ao passo que o prestígio das Forças Armadas é elevado em comparação com outras instituições. Recente pesquisa constata que os partidos políticos (88%), a Câmara dos Deputados (81%) e o Senado Federal (76%) não têm merecido a confiança dos entrevistados, ao passo que as Forças Armadas (69%) são superadas apenas pela Igreja Católica (71%) e os médicos (81%) na confiança dos brasileiros.
De outro lado, as Forças Armadas têm sido chamadas a realizar obras de engenharia, a oferecer formação profissional a jovens em idade de prestação de serviço militar, a colaborar com políticas públicas de saúde, além do emprego no combate ao narcotráfico. Portanto, as relações das Forças Armadas com a sociedade civil – intermediadas ou não pelos governos - são também diversificadas, tendendo a expandir-se por iniciativa e decisão do poder político.
Em contraposição, o Congresso Nacional preserva habitual desatenção com a Defesa Nacional. Mesmo diante das responsabilidades do Exército Brasileiro no Haiti, são tímidas as repercussões no Legislativo.
A crise política que há quase quatro meses monopoliza a atenção da opinião pública não é estimulada nem freada pela variável militar. De fato, em decorrência do que se disse nestes comentários, as Forças Armadas são a variável desconsiderada.
(1) https://www.defesa.gov.br/enternet/sitios/internet/ciclodedebates/ciclodedebates.php