GASTOS RESERVADOS

Carlos Wellington Leite de Almeida*
Abril 2007


Uma das questões mal resolvidas pelos governos do continente americano diz respeito aos gastos reservados. Estes podem ser definidos como aqueles que não seguem integralmente as regras legais sobre transparência, negando ao conhecimento público um ou mais elementos de identificação e classificação do gasto, tais como a fonte de financiamento, a destinação do recurso, a finalidade da despesa, a autoridade responsável, o funcionário encarregado, o valor despendido, entre outros. São mais comuns nas áreas governamentais que têm no sigilo um fator comum a nortear parte de suas atribuições e competências, tais como a defesa nacional, a segurança pública e a inteligência governamental (civil ou militar).

A análise do grau de transparência das políticas públicas na América Latina permite entrever um baixo grau de transparência. Em geral, tratam-se de políticas concebidas e conduzidas de forma fechada pelas autoridades encarregadas, sendo baixa a participação social em qualquer das etapas envolvidas. Como resultado, haverá uma freqüência razoavelmente alta de gastos reservados. Isso como resultado de uma evolução histórico-política marcada, quase sempre, pelo patrimonialismo e pelo clientelismo, e, com particular ênfase no que toca às políticas de defesa, segurança pública e inteligência, também pela chamada cultura de sigilo.

Causa possíveis para o déficit de transparência

Partindo da classificação proposta por George Kopits, diretor do Fiscal Affairs Department do Fundo Monetário Internacional (FMI), a Red de Seguridad y Defensa de América Latina (RESDAL), elaborou detalhado trabalho no qual identificou possíveis causas para o déficit de transparência no setor defesa, com a conseqüente geração de gastos governamentais de teor reservado1. Apresentam-se, nesse sentido, a cultura de sigilo, a negação ou postergação de reformas na estrutura da defesa nacional, a falta de aderência entre os objetivos de defesa e os objetivos nacionais, a proteção de interesses corporativos, a proteção de interesses particulares e a incapacidade técnica.

Particularmente no mundo da defesa, e em especial nas forças armadas, prevalece uma forte cultura de sigilo. Esse fenômeno ocorre em praticamente todos os países, mas, principalmente, naqueles em que os militares estiveram diretamente ligados a momentos políticos antidemocráticos. Esse é o caso de boa parte da América Latina, onde militares e civis, em geral, ainda seguem com dificuldades no que se refere ao estabelecimento de novos padrões de convivência.

A cultura de sigilo pode ser definida como a indevida extensão das características sigilosas de determinados assuntos a outros que deveriam ser, aprioristicamente, de conhecimento generalizado. É comum no meio militar, haja vista o teor sigiloso de muitos assuntos tratados, o que, aliado a vícios de ordem comportamental ou à simples falta de atenção a critérios distintivos, pode resultar na exagerada atribuição de sigilo a assuntos ordinários. Militares costumam apresentar uma forte tendência a classificar como sigilosos assuntos completamente comuns.

A negação ou postergação de reformas na estrutura da defesa diz respeito à intenção de ocultar do conhecimento público a necessidade existente ou iminente de reformas no setor defesa, notadamente as que afetem sua estrutura orçamentária. A falta de aderência entre os objetivos de defesa e os objetivos nacionais remete-se ao distanciamento entre as ações implementadas no setor defesa e os interesses maiores da nação aos quais deveriam estar subordinadas. A proteção de interesses corporativos relaciona-se à atitude defensiva natural que caracteriza uma categoria de pessoal qualquer quando alvo de questionamentos capazes de reduzir-lhe as vantagens pessoais, em especial as de ordem pecuniária. A proteção de interesses particulares, por fim, diz respeito à garantia de interesses pessoais, individuais, dissociados ou não dos interesses de categoria.

Em sentido oposto à cultura de sigilo e a todas as características acima descritas, tem-se o dever de transparência. Este deve ser entendido como um dever democrático que tem o administrador público de prestar contas de seus atos de gestão e do uso que faz do dinheiro público. A transparência não deve ser vista apenas como uma exigência dos órgãos controladores, mas como uma exigência social sobre o administrador. A situação não é distinta em relação à defesa. Os administradores do sistema de defesa devem prestar contas de seus atos como os demais administradores de recursos do Estado.

A identificação dessas possíveis causas para a baixa transparência em alguns importantes gastos governamentais é bastante precisa e oportuna, no que se refere à geração de gastos reservados. Em geral, são esses os motivos que costumam levar um órgão ou entidade de governo a realizar despesas com negação de publicidade, ou com ocultação de um ou mais elementos identificadores e classificadores de despesa.

Os efeitos negativos dos gastos reservados

Longe se vão os tempos em que se podia dizer que a realização de gastos sem a devida transparência não trazia prejuízos à gestão do dinheiro público e à sociedade. Da mesma forma, já não mais se pode afirmar que a interferência da sociedade na gestão pública seja indevida ou prejudicial ao andamento do serviço público. A consolidação da democracia e de suas instituições tratou de afastar essa forma de pensar anacrônica e injustificável. A transparência, hoje, é princípio basilar sobre o qual se assenta boa parte da razão democrática e de seus valores, não podendo ser reduzida a instrumento de menor importância, seja qual for o motivo alegado para sua desconsideração.

Especificamente, para o setor defesa, a questão gravita ao redor do balanço (ou desbalanço) entre a necessidade de transparência e a necessidade de sigilo. Analisando o caso do Peru, Arlette Beltrán e outros pesquisadores apontam, justamente, a pouca disponibilidade de informação como um fator limitante para a análise adequada do orçamento da defesa nacional2. De fato, o sigilo é característico de muitos dos assuntos militares, o que não deve ser esquecido. Contudo, a transparência é essencial para garantir eficácia e eficiência no uso do dinheiro público e os gastos reservados caminham na contramão dessa desejada evolução.

O primeiro e mais contundente malefício dos gastos reservados é o comprometimento do princípio da eficiênciana despesa pública. É consagrada a noção de que a eficiência, isto é, a geração de resultados com o menor custo, encontra-se umbilicalmente ligada à transparência. Isso porque o aperfeiçoamento constante na utilização dos recursos públicos, com a decorrente obtenção de melhores resultados, é conseqüência direta da crítica construtiva que só se mostra possível em ambiente institucional que prime pela supervisão contínua e pelas sucessivas avaliações. Os gastos reservados, pela sua não-exposição à crítica dos órgãos especializados e, em especial, à crítica do controle social, tendem a ser gastos que, além de marcados pela duvidosa legalidade, mostram-se viciados também pelo desperdício.

Do ponto de vista das relações exteriores, os gastos reservados têm a terrível capacidade de gerar desconfiança internacional. Os países vizinhos, em especial, são os mais afetados por esse efeito colateral das despesas militares realizadas sob o manto do sigilo. Em um ambiente no qual se prima, cada vez mais, pelo incremento das medidas de confiança mútua, a realização de gastos reservados se apresenta como importante óbice a ser superado. Não foi por outro motivo que nas reuniões da Comissão de Segurança Hemisférica da Organização dos Estados Americanos, em 2006, os representantes diplomáticos chegaram à conclusão de que a falta de transparência nas despesas militares nos países do continente constitui-se em uma das principais barreiras ao pleno desenvolvimento da confiança entre os países das Américas.


* Miembro del equipo coordinador del proyecto Transparencia Presupuestaria de RESDAL. Secretario de Control Externo del Tribunal de Cuentas de Brasil.
(1) DONADIO, MARCELA et alli. El presupuesto de defensa en América Latina: la importancia de la transparencia y herramientas para el monitoreo independiente. Red de Seguridad y Defensa de América Latina (RESDAL)/ Seguridad Estratégica Regional en el 2000. Buenos Aires, 2004.
(2) BELTRÁN, ARLETTE et alli. “El presupuesto fiscal del Perú”. En: PATTILLO, GUILLERMO (org.). Gasto y transparencia fiscal: Argentina, Chile y Perú. Universidad de Santiago de Chile, Santiago de Chile, 2001.