ELABORAÇÃO DE UMA VISÃO COMUM DE SEGURANÇA NO MERCOSUL


Érica C. A. Winand * &
Héctor Luis Saint-Pierre **


A integração em blocos, como o Mercosul, foi uma alternativa para atender às demandas de competitividade economia do fim da Guerra Fria. Esta integração acabou estendida a questões estratégicas. As alterações políticas e econômicas trouxeram consigo as “novas ameaças” que ordenaram a agenda do sistema internacional. Questões como narcotráfico, terrorismo, proliferação de armamentos, desigualdade social, desrespeito ao meio-ambiente e aos direitos humanos, garantia da democracia e crime organizado passam a integrar a lista de preocupações.

O mundo emergente está caracterizado pela interdependência, daí que, ante aos desafios globais, a cooperação tornou-se um mecanismo da nova configuração internacional. Por isso podemos nos perguntar pela consistência de um projeto de segurança ou, pelo menos, sobre a existência de uma visão comum sobre segurança no âmbito do Mercosul. Mas, a despeito da confluência de interesses ocorrida entre os seus membros, não existe um projeto de segurança único para a região. Aliás, no Mercosul ainda não há univocidade conceitual sobre segurança, como reconhece o Ministro da Defesa do Brasil, ainda não se trabalhava com definições consensuais e inequívocas neste âmbito, “nenhuma formulação passou a ser considerada como uma definição acabada e exata, acima de qualquer crítica, do que venham a ser ‘defesa’ e ‘segurança’”. [1]

Apesar do objetivo principal ser o estabelecimento de um mercado comum, existe um Mercosul Político. Este surgiu “com o propósito de ampliar e sistematizar a cooperação política entre os países membros, examinar questões internacionais de especial interesse e considerar assuntos de interesse político comum”. Foram assinadas as primeiras declarações presidenciais que estabeleceram o Mecanismo de Consulta e Concertação Política do MERCOSUL (MCCP). [2] O Mercosul Político também compreende as áreas de coordenação de políticas externas, de cooperação em matéria de segurança internacional e em matéria de segurança interna entre outros. [3]

Para identificar coincidências e divergências nos projetos de coordenação de políticas de segurança, analisamos os Comunicados Conjuntos, Declarações Presidenciais, Atas de Reuniões Conjuntas e Resoluções parlamentares. Neles constatamos a convergência a respeito das novas ameaças. Ou seja, a segurança percebida pelos países do Mercosul depende do controle do narcotráfico, do terrorismo, da proliferação de armamentos, da desigualdade social, do meio-ambiente, dos direitos humanos e da garantia da democracia. Esta última aparece enfatizada em diversos textos governamentais. Os países membros reiteraram os princípios contidos no Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático, o valor das instituições democráticas e a forma republicana de governo como condições fundamentais para o desenvolvimento do processo de integração e marco da segurança e da estabilidade. [4]

As outras questões referentes às novas ameaças surgem na maioria dos documentos avaliados, inclusive em resoluções que aprovam a cooperação entre os Estados no controle de atividades ilícitas, como tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e o terrorismo. Também se prevê a cooperação e coordenação recíproca no controle de ilícitos ambientais e do Tráfico de material nuclear e intercâmbio de informações sobre segurança. [5] No entanto, não são resoluções exclusivas do Mercosul, mas de organismos multilaterais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

No Comunicado Conjunto de Los Presidentes de Mercosur, Bolivia y Chile, escrito durante reunião extraordinária de 18 de fevereiro de 2002 em Olivos, os Estados decidiram criar o Grupo de Trabalho Permanente do Mercosul, Bolívia e Chile contra o terrorismo, comprometendo-se a “Reafirmar seu compromisso com a cooperação internacional na luta contra o terrorismo, comprometendo-se a prosseguir com o apoio no âmbito da OEA, aos trabalhos do Comitê Interamericano contra o terrorismo (CICTE)”. [6]

Outro documento recente prevê a cooperação entre as forças policiais, de segurança e organismos competentes dos países da região, para controlar atividades delituosas, em especial, as ligadas ao narcotráfico, ao terrorismo, ao tráfico de armas, munições e explosivos e à lavagem de dinheiro. [7] De acordo com este documento, “a luta contra todas as formas de delinqüência organizada impõe uma ação conjunta, coordenada e acordada no Mercosul, na República da Bolívia e na República do Chile.”

Malgrado esses, é difícil constatar uma visão comum sobre segurança entre os membros do Mercosul, entre outras coisas porque: 1) no âmbito da segurança, no sistema regional prevalecem acordos e medidas bilaterais em detrimento de acordos e medidas comuns a todos os membros do bloco; 2) não há uma metodologia comum entre os membros que permita comparar os orçamentos da defesa; 3) nem todos os governos publicam sua visão acerca deste e outros temas referentes à política interna e externa, o que, entre outras coisas, dificulta especular sobre sua perspectiva estratégica; 4) não todos os governos possuem Livro Branco da Defesa.

O relacionamento convergente entre Brasil e Argentina é a maior expressão da unificação de uma visão em torno da segurança regional. Nossa tese é que a partir desse acordo poder-se-á construir um sistema de segurança comum para o Mercosul. O encontro brasileiro-argentino ocorrido em 2003 na cidade de Calafate confirma o interesse mútuo por uma aliança estratégica. [8] Numa Declaração Conjunta dos Presidentes [9] reforçou-se a idéia de consolidar a associação estratégica entre ambos num âmbito de amizade, confiança e previsibilidade. Na ocasião firmaram o “Memorando de Entendimento de um mecanismo de intercâmbio de informação sobre a circulação de tráfico ilícito de armas de fogos, munições e materiais explosivos”. Além disto, acordaram em estabelecer um procedimento especial de cooperação e trabalho conjunto no âmbito do Conselho de Segurança da ONU.

Antes disto, um documento instituíra que Brasil e Argentina deveriam se apresentar mutuamente relatórios sobre os avanços na cooperação nuclear, no desenvolvimento de projetos aeroespaciais conjuntos e nas consultas para aprovação de material aeronáutico. Manifestou-se o interesse mútuo no desenvolvimento de veículos lançadores de satélites e das capacidades específicas necessárias para o uso da Base de Alcântara e de realizar uma missão satelital conjunta de observação para os territórios do Brasil, Argentina e países da região [10]. Segundo o Consenso de Buenos Aires, assinado na mesma ocasião, os países se comprometiam em tentar acabar com o desemprego e a pobreza, em reafirmar o papel da ONU e do CS nas relações internacionais como instrumento universal para manutenção da paz e da segurança internacional. Ressaltaram a importância da carta da ONU e a necessidade de combater ameaças à paz e à segurança internacionais e de conter o terrorismo.

A existência de relações bilaterais em diferentes níveis dentro do espaço compreendido pelo Mercosul nos leva a concluir que ainda não existe um projeto comum na área de segurança para todos os países. Apesar da falta de unidade estratégica entre Brasil e Argentina, ambos têm mostrando clara disposição para isto nos diversos mecanismos assinados. Até o momento constata-se a consolidação da confiança mútua que pode, num futuro próximo, conduzir a uma efetiva cooperação em defesa e segurança.

Nossa hipótese, a modo de conclusão, é que, se continuarem os esforços dos dois maiores parceiros do Mercosul por estreitar gradualmente seus laços de amizade, transparência e cooperação, poderão vir a constituir o núcleo duro de um sistema gravitacional estratégico cooperativo não-excludente que, como um poderoso centro gravitacional na região, poderá atrair os outros países com os mesmos interesses induzindo-os a unirem-se em torno de um sub-sistema de segurança para o Mercosul eficiente, eficaz, econômico, acorde e atento as necessidades regionais e harmonizado com os mecanismos do sistema internacional.



* Bacharel e Licenciada em História pela Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista (Brasil). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).. Redatora do Observatório Cone Sul de Defesa e Forças Armadas que encontra-se disponível em: http>//: www.unesp.br/linksdagraduação.
** Livre docente doutor, Chefe do Departamento de Educação e Relações Internacionais, Universidade Estadual paulista (UNESP), Coordenador do Grupo de Estudos da Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e Diretor do Centro de Estudos Latino Americanos, UNESP
[1] Conferência do Ministro do Estado da Defesa, José Viegas Filho, no Curso de Gestão de Recursos de Defesa organizado pela Escola Superior de Guerra (ESG) e pela Secretaria de Organização Institucional do Ministério da Defesa, que ocorreu em Brasília, em 21 de outubro de 2003. Disponível em:www.defesa.gov.br
[2].-Declaração Presidencial sobre Diálogo Político entre os Estados Partes, San Luis, Argentina, junho de 1996; e Declaração Presidencial sobre Consulta e Concertação Política dos Estados Partes do Mercosul, Assunção, junho de 1997.
[3] O Mercosul Político. Disponível em: www.mercosul.gov.br/textos
[4] Comunicado Conjunto de Los Presidentes de Los Paises del Mercosur, Bolivia y Chlie, XVIII Reunión Cumbre Presidencial del Mercosur, Buenos Aires, 30 de junio de 2000. Disponível em:http//:www.emarg.gov.br. A cláusula sobre democracia também foi referida no Comunicado de Brasília, elaborado por ocasião da Reunião de Presidentes da América do Sul. Também alude à democracia o Comunicado Conjunto de Los Presidentes de Los Estados Partes del Mercosur realizado em decorrência da XVIII Reunião do Conselho do Mercosul, que diz que os países reafirmam sua adesão aos princípios e instituições democráticas, como um dos pilares em que se sustenta o Tratado de Assunção. Há ainda uma declaração política do bloco como uma “Zona de Paz e Cooperação, livre de armas de destruição massiva”.
[5] Ver: MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 10/00.Complementação do Plano Geral de Cooperação e Coordenação Recíproca para Segurança Regional em matéria de Ilícitos ambientais; MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 12/00. Complementação do Plano Geral de Cooperação e Coordenação Recíproca para Segurança Regional em matéria de Tráfico Ilícito de Material Nuclear e/ou Radioativo entre os Estados Partes do Mercosul. MERCOSUL/CMC/DEC. Nº 18/00. Complementação da Definição e Configuração do Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança entre os Estados Partes do Mercosul. Disponível em:www.mercosul.org.uy
[6] Disponível em:www.mercosul.org.uy
[7] Entendimento relativo à cooperação e assistência recíproca para segurança regional no Mercosul, na República da Bolívia e na República do Chile do 04 de dezembro de 2003. Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul. Representação Brasileira. Resultado de Reunião, pauta nº 10/2003. Disponível em:www.camara.gov.br/mercosul
[8] Durante o Encontro do Mecanismo Permanente de Consulta e Coordenação sobre Temas de Defesa e Segurança. Ver: Comunicado Conjunto de Prensa de Los Presidentes de La República Federativa del Brasil, Luiz Ignácio Lula da Silva y da Republica Argentina, Néstor Kirchner. Brasília, 11 de junho de 2003. Disponível em:www.emabarg.br.
[9] Declaração Conjunta dos Presidentes da República Federativa do Brasil e da República da Argentina, assinada em Buenos Aires no dia 16 de outubro de 2003,
[10] Assinado pelos presidentes de lãs Câmaras de Deputados de ambos países em 15 de agosto de 2003, sete dias antes do acidente que envolveu a explosão do Veículo Lançador de Satélites (VLS).