O BRASIL NO HAITI E O HAITI NO BRASIL

Jorge Zaverucha (Professor da UFPE e pesquisador sênior do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
Julio 2004


Não é de hoje que o Brasil acalenta o desejo de possuir assento fixo no Conselho de Segurança da ONU. Atualmente, restrito a cinco países (EUA, Reino Unido, França, Rússia e China). Foi com a intenção de entrar para este seleto grupo de países que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) procurou criar o Ministério da Defesa.

O projeto pouco avançou durante os quatro primeiros anos do mandato de FHC. Um fator externo fez com que o projeto saísse da sua letargia: os EUA anunciaram que a Argentina seria seu sócio militar extra Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Imediatamente, surgiu a declaração, no dia 17 de agosto de 1997, do então presidente Carlos Menem de que o lugar dos países latino-americanos no Conselho de Segurança da ONU deveria ser rotativo. E não fixo para o Brasil, como desejava a diplomacia verde-amarela.

Receoso da posição argentina, uma semana depois, o Presidente brasileiro, durante a reunião do Grupo do Rio, em Assunção, anunciou a criação do Ministério da Defesa(1). Foi uma clara manobra política para favorecer a candidatura do Brasil a um assento no Conselho de Segurança da ONU. Afinal, seria difícil explicar ao mundo como um país que aspira decidir sobre questões de segurança internacional possuísse quatro ministros militares respondendo pela pasta da Defesa. Pela gênese de sua criação, percebia-se que o Ministério da Defesa não foi, primordialmente, criado para ajudar a submeter os militares ao controle democrático civil. Mas, para fins instrumentais, como veremos no final deste artigo.

FHC terminou seus oito anos de poder sem conseguir um assento no Conselho de Segurança para o Brasil. Seu substituto, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, continua acalentando tal projeto. Acredita que pertencendo ao mencionado Conselho, o Brasil ganha mais poder na arena internacional, inclusive, para barganhar sua vultosa dívida externa. É uma aposta. Além disso, Lula precisa se diferençar do seu antecessor. Seu governo vem sendo acusado de praticar a continuidade, em vez da ruptura, com o governo anterior.

Portanto, o envio de tropas brasileiras para o Haiti deve ser entendido como sendo parte desta política governamental de liderar a América Latina. Como assim? Sob o ponto de vista das relações internacionais, o governo brasileiro pretende mostrar ter capacidade de conduzir ações em prol da paz e segurança mundial. Lula quer ganhar a confiança internacional. Ir ao Haiti significa agradar tanto aos EUA como à França. Dois membros natos do Conselho de Segurança. Hoje em dia, não é fácil afagar simultaneamente estes dois países. Uma oportunidade de outro, na ótica do Itamaraty.

Esta decisão provocou debates dentro do Partido dos Trabalhadores (PT) que é o partido do Presidente da República. Afinal, o presidente deposto pelos EUA, com o beneplácito da França, Jean Bastide Aristides, seria de esquerda. Para alguns setores do PT, Lula estaria fazendo o jogo dos interesses norte-americanos além de legitimar a prática de golpe de estado. E, por isto mesmo, o Brasil não deveria liderar as tropas da ONU, mas apenas colaborar com o envio de tropas por ser, inclusive, membro da Organização de Estados Americanos.

Um outro ponto motivo de discórdia foi o custo econômico da participação brasileira. Enquanto projetos sociais não deslancham por falta de verbas, o Brasil desembolsará cerca de US 150 milhões para cobrir as despesas com sua força militar. Trata-se da maior força expedicionária brasileira desde a II Guerra Mundial: cerca de 1.200 homens e mais mil tripulantes de navios e aviões. Os críticos indagam se não seria melhor utilizar esta verba para outros fins. Ou seja, mais manteiga e menos canhões.

Esta discussão foi superada, mas voltará, com mais intensidade, caso o Brasil ganhe seu assento fixo no Conselho de Segurança. Participar deste Conselho custa caro. As Forças Armadas de cada um destes países precisam estar prontas para a manutenção do que consideram ser a ordem internacional. O que demanda equipamentos adequados e manutenção operacional. E esta não é a atual situação das Forças Armadas brasileiras. Metade das viaturas do Exército tem mais de 20 anos, a Marinha desvencilhou-se de 13 navios e vários aviões estão no solo, por falta de peças de reposição ou de combustível. Além do mais, o Brasil está em débito com sua contribuição financeira regular com a ONU.

Outro aspecto que levantou polêmica ocorreu por um motivo circunstancial. No momento em que se anunciou a ida de tropas para o Haiti, irrompeu uma acirrada disputa de quadrilhas de bandidos em duas favelas do Rio de Janeiro. O tiroteio transbordou para bairros de classe média carioca. Ante o pânico, tropas do Exército estiveram para serem empregadas, mas não as foram. Alguns se indagam: Por que os militares brasileiros vão patrulhar as ruas de Porto Príncipe e não as do Rio de Janeiro? O Haiti não seria aqui?

A resposta foi dada, parcialmente, pelo Ministério da Defesa. De acordo com esta pasta, o envio de militares brasileiros para o Haiti servirá como um treinamento das Forças Armadas para, eventualmente, enfrentar situações de repressão à criminalidade no país, como no Rio de Janeiro. A missão no Haiti funcionará, portanto, como adestramento para o uso de tropas militares, especialmente, nos centros urbanos brasileiros.

De fato, o 19º Batalhão de Infantaria Motorizado, sediado no Rio Grande do Sul, que já treina para esse tipo de atividade de militarização da segurança pública, foi um dos escolhidos para ir ao Haiti. Curiosamente, certas tropas militares sediadas no Rio de Janeiro não foram enviadas ao Haiti, pois precisam guarnecer os quartéis do Exército que vem sendo atacados por bandidos.

O processo de indicação dos comandantes militares mostrou a fragilidade da democracia brasileira. O Comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, indicou sem consultar o Ministro da Defesa, o general que chefiará a tropa brasileira bem como o general encarregado pelo comando-geral da Força Internacional de Paz. Além disso, o General Albuquerque não compareceu à cerimônia que celebrou o quinto aniversário de criação do Ministério da Defesa. O Presidente Lula quer ajudar a estabelecer a ordem no Haiti. Mas quem ajudará o Presidente Lula a instituir um efetivo controle civil democrático sobre os militares brasileiros?


Fuente:
Artículo publicado en el Boletín de RESDAL Nº 15, julio 2004.


(1) FHC também tinha a ambição de tornar-se Secretário Geral da ONU.